Lynch: Final Cut
Eis o que faltava da entrevista de David Lynch à Les Inrockuptibles. Divirtam-se.
Uma pergunta provocadora: qual é o sentido de INLAND EMPIRE?
(risos)… Ora aí está uma pergunta muito má! Apetece-me virá-la: e na sua opinião?
O filme está acabado, está aí. Trabalhei nele durante três anos, até que achei que estava terminado. Em seguida, pertence a quem o vê. Mas reconheço que certos filmes são mais fáceis que outros. Ao mesmo tempo, a linguagem do cinema permite-nos contar e compreender as coisas por processos diferentes. Há a compreensão intelectual e a compreensão emocional.
Os grandes poetas são capazes de transmitir as emoções com palavras por vezes muito abstractas. É igual no cinema. Um filme é um fluxo de tempo, de sons e imagens entrançados juntos. De facto, aproxima-se mais da música do que das palavras, mas é ainda mais que a música. E esse fluxo cria uma magia por vezes difícil de pôr em palavras.
Justamente, ao ver INLAND EMPIRE, dizemo-nos que o processo de escrita de um filme assim é muito misterioso. Contrariamente ao que se poderia pensar, eu quase não improvisei nada durante as filmagens. Bem, um bocadinho, mas em proporções mínimas. Vocês sabem, eu acredito nas ideias. De vez em quando, apanhamos uma ideia pela qual nos apaixonamos. Quando isso acontece, o essencial do trabalho está feito, é verdade! No caso de INLAND EMPIRE, escrevi esta ideia no papel, escrevi muitas cenas, e se as ligássemos umas às outras, obteríamos aquilo a que se chama um guião. A partir daí, um projecto mais vasto que a minha ideia inicial emergiu. Essa ligação entre as cenas apareceu-me durante as filmagens, enquanto que normalmente acontece durante a escrita.
Quando escreve uma cena, descreve uma tonalidade geral, ou escreve cada detalhe, cada elemento de décor, o sítio da câmara, etc..?
O sítio da câmara certamente que não. Para mim o processo de escrita serve sobretudo para não me esquecer das minhas ideias. O que escrevo, normalmente, é um local, eventualmente a atmosfera, as personagens e o diálogo. E mais nada. Chega-me para me lembrar da minha ideia. E quando filmo, tento transcrever o mais próximo possível a minha ideia. Vou-lhes dar um exemplo: um actor diz uma linha de diálogo, e não me parece conforme com a minha ideia. Então discutimos, o actor rediz o diálogo, e até que uma lâmpada imaginária se acenda por cima da cabeça do actor e que ele consiga dizer o diálogo de acordo com a minha ideia. E conseguimos sempre.
A sua relação de trabalho com Laura Dern foi de actriz/realizador, ou a Laura contribuiu para a construção da personagem, no estado da escrita por exemplo?
Como eu digo, as ideias vêm, e é uma questão de lhes permanecer fiel. A Laura e eu discutimos muito sobre o filme, e muitas vezes eu dizia-lhe: "Eu não sei o que acontece depois, não sei o que significa esta cena, não sei isto ou aquilo." Mas quando nos concentrávamos na cena, já sabia o que fazer e como fazê-lo. Controlava as peças uma a uma, mas não o conjunto.
Em cada cena, discutíamos até que Laura apanhasse a minha ideia e acendesse a cena.
Depois, o seu trabalho consistia em encarnar as minhas ideias e torná-las reais, credíveis, a um nível profundo. É uma grande actriz.
Como todos os seus filmes, INLAND EMPIRE é rico em personagens secundárias estranhas e memoráveis, como a velha senhora que vem tomar chá a casa de Laura Dern.
É Grace Zabriskie, que vocês já viram em Twin Peaks onde ela representava a mãe de Laura Palmer. É também ela que ajuda a matar Harry Dean Stanton em Coração Selvagem. Ela pode ser muito inquietante. É uma dessas actrizes pouco conhecidas mas que trabalham constantemente. Gosto da Grace e acho que ela é capaz de representar tudo e mais alguma coisa.
Como Mullholand Drive, este filme tem em parte Hollywood como tema. Pode parecer paradoxal enquanto você está cada vez mais separado da indústria Hollywoodiana.
Talvez seja devido ao meu fascínio pela velha Hollywood. Gosto de Los Angeles porque aí coexistem vários estados históricos. A idade de ouro de Hollywood ainda se encontra viva, presente. Com certeza, esses rastos da velha Hollywood são cada vez mais raros, cada vez mais cobertos pelo tempo, mas estão lá, como um perfume que flutua no ar ambiente. Tenho esse fascínio pela idade de ouro dos estúdios e pela magia que eles criaram.
Como explica que um apaixonado pela história de Hollywood já não possa encontrar o seu lugar lá hoje em dia?
Eu já não tenho o meu lugar em Hollywood, mas encontrei uma casa de substituição tão boa em França, onde as pessoas pensam apenas no que pode ou o que deve ser um filme. A França é a grande protectora da noção de cinema de autor, de protectora de arte. É tão importante. A única coisa que me desilude aqui, é que vocês vão seguir os outros países e vai ser também proibido fumar. Francamente deprime-me. Essa corrente que começou na Califórnia é verdadeiramente lastimável.
Porquê ou como se cruzou com a cidade de Lodz, na Polónia?
Fui lá para um festival. É uma cidade de cinema, há lá uma escola célebre. Mas é também uma cidade industrial e adoro isso! Tirei muitas fotografias das fábricas de Lodz…
Mas também gosto da arquitectura do centro da cidade, especialmente no Inverno. A luz do Inverno é formidável lá, as nuvens são muito baixas e cinzentas, e misturam-se com a cidade.
A atracção poética ou arquitectural de Lodz era a sua única motivação, ou estava interessado também pela sua história, marcada pelo comunismo e pelo nazismo?
As minhas ideias para as cenas situadas em Lodz não estavam especificamente ligadas com a História, mas carregavam com elas uma tonalidade escura, inquietante, que talvez esteja ligada inconscientemente ao passado da cidade. Mas há também outra coisa que me marcou na Polónia desde a minha primeira viagem: está a chegar uma nova geração, muito mais optimista que as anteriores. O comunismo acabou. A Polónia é um país livre, e as pessoas sentem isso, embebem-se desse sentimento novo.
Como todos os seus filmes, INLAND EMPIRE impressiona pela minúcia nos detalhes sensoriais, na imagem, mas talvez ainda mais no som. Temos a sensação que vai ainda mais longe nessa direcção da sensação pura, por exemplo alterando a textura de uma voz no decorrer de uma sequência.
A minha motivação primária, digo-o mais uma vez, é permanecer fiel às ideias. A linguagem de um filme é imagem e som desfiando juntos. Do lado da imagem, não filmo enquanto o que estiver à frente dos meus olhos não me parecer bem, em termos de luz, do aspecto do local, etc. Depois, os actores começam a falar, apercebemo-nos de que há mil maneiras de pronunciar um frase ou uma palavra. A textura de uma voz, o diálogo devem soar justo aos meus ouvidos. Hoje mais que nunca, a qualidade de uma voz pode ser manipulada a gosto. É um trabalho importante e muito delicado. Depois, é igual com todos os sons: existem mil combinações, mas só há uma, ou talvez duas, que se fundem perfeitamente com os outros elementos do filme ou da cena. Os barulhos de passos, as aberturas ou fechos de portas por exemplo: se não soarem certos, esses barulhos podem arrumar com uma cena. Depois, há os sons abstractos, que se aproximam da música, por exemplo o som de uma presença invisível numa sala ou da circulação automóvel. Finalmente, há a música. Todos esses sons podem nadar juntos numa bela harmonia ou numa bela dissonância, mas é necessário muito trabalho e experiências para chegar a um bom resultado. Robert Altman era um grande experimentador do som.
Considera-se um cineasta experimental?
Talvez. Mas um cineasta experimental é o quê ao certo? Não faço ideia. Tenho ideias, tento concretizá-las pelo cinema. Mas não vejo em que seria diferente no caso de um filme com um argumento clássico. O cinema experimental, a meu ver, seria quando o cineasta não conhece e
não domina nada e se põe a filmar o que lhe passa pela cabeça ou à frente dos olhos, e depois, vê o que dá na montagem. Mas até nesse caso, eu não estaria certo da etiqueta. Até nem tenho a certeza que qualquer um possa fazer um filme que ninguém compreenda. Existem tantas possibilidades, combinações, na vida, que permitem quebrar os códigos normativos. O cinema deve poder explorar e mostrar essas possibilidades, mas não considero essa fórmula experimental.
Tem consciência do seu estatuto único, o de um cineasta totalmente livre na sua criação mas à vontade financeiramente, tanto pessoalmente como para produzir as suas obras?
Nós somos todos livres, incluindo aqueles que trabalham para os estúdios. Basta querer essa liberdade e tomá-la. Mas há uma coisa terrível, que é quando alguém contrata um realizador e depois o impede de fazer o filme como ele quer. Cada realizador, cada criador tem como que uma lâmpada de vida, de luz e criatividade nele. Esse tipo de coisas podem fazer a lâmpada explodir. Por outro lado, se está num desses sistemas de estúdios, e um director lhe pede delicadamente: "seria possível recompor isto ou aquilo?", então é outra conversa. A ideia dos directores do estúdio pode ser boa, até aos olhos do realizador. Uma ideia é uma ideia, pouco importa de onde vem. Essas ideias são normalmente motivadas por considerações de marketing. As ideias vindas de considerações comerciais são um horror para mim. O Dino (De Laurentiis) tinha o final cut de Dune. Quase morri por causa disso. E nunca mais quero reviver uma experiência dessas.
Faz muita meditação transcendental. Do que se trata exactamente?
Há muitas formas de meditação. A palavra transcender é a chave da meditação transcendental. É uma técnica mental, que permite a cada ser humano lá mergulhar. E quando mergulhamos, podemos experienciar alguns níveis de consciência, passar para lá do ego, e "transcender" para atingir os níveis mais profundos da existência. O que a ciência moderna chama de "campo universal", a ciência védica chama atma, o eu mesmo, o ser puro. Esse campo tem na verdade montes de nomes: a totalidade, o absoluto, a inteligência criativa, a beatitude, a energia pura, o amor universal, a sabedoria total…
É o quê, mergulhar?
Mergulhar em si. Dão-vos um mantra. Um mantra é um som, uma vibração, um pensamento. Senta-se confortavelmente, fecha os olhos, e repete- mentalmente esse mantra. E, pouco a pouco, parte para longe.
Quanto tempo dura? Uma hora?
Transcende desde os primeiros minutos. Quando transcende, encontra uma experiência que desejaria ter tido toda a vida. Em francês, chamamos a isso a "beatitude". Em inglês, é o "bliss". É a alegria física, mental, emocional e espiritual. É poderoso! E isso existe potencialmente em cada um, se conseguirmos atingi-lo. Existe uma técnica para isso, dada pelo maharashi. É um simples veículo para o transportar para a beatitude, como apanharia um avião para Nova Iorque. Mas a beatitude não é um local geográfico, ela está "aqui, ali e em todo o lado" como cantavam os Beatles, "Here, There and Everywhere", veio-lhes do maharashi. É portanto uma técnica que permite desvelar todas as potencialidades de um ser. É tudo. Aprender e conhecer essa técnica, é a iluminação, a iniciação. Temos todos um potencial gigantesco.
Esse tipo de meditação ajuda-o então a desenvolver o seu potencial e a fazer os filmes que faz?
Sim. Se for um homem de negócios, ajuda-o ao dar-lhe mais ideias, mais energia, mais alegria interior. Ajuda a olhar para uma árvore, a ter mais prazer a andar, a falar… E a meditação contribui para afastar os aspectos negativos da sua vida. Eu estava cheio de raiva por causa do meu primeiro casamento. Duas semanas depois de ter começado a meditar, a minha primeira mulher veio-me perguntar: "O que é que se passa? – O que queres dizer? – Essa raiva, como fizeste para a expulsar?" Eu não me tinha apercebido que se tinha dissipado!
E se lhe disséssemos que é preferível guardar a sua raiva e permanecer o próprio? Não tem medo de perder a sua personalidade?
Pelo contrário, tornamo-nos ainda mais nós próprios. Quando pensa em sentimentos tais como a raiva, o medo, o ódio, a depressão, o desgosto, a tensão, apercebe-se que não são boas ferramentas para um cineasta. Esses sentimentos são um entrave à criatividade. Quando estamos deprimidos, nem sequer podemos sair da cama, então como poderíamos criar?
Mas essa alegria não é um impasse de tolice, é uma beleza espessa que permite apreciar e compreender melhor a condição humana. Eu "transcendo" vinte minutos de manhã, vinte minutos à tarde, e tudo melhora. Uma outra analogia do nível da consciência atingido pela meditação é o "tesouro". É como se entrasse na vida com um montante determinado nos bolsos. É absurdo para mim dizer "vou-me contentar com esta quantia" enquanto existe uma técnica que permite mergulhar em si e atingir o "tesouro". E nesse "tesouro", as quantias são ilimitadas! Normalmente, sofremos a trabalhar, a criar, e somos recompensados quando o trabalho está acabado. Com a meditação, trabalhar torna-se num prazer, e se falharmos, não ficamos devastados por isso. Ganhamos tanto gosto a criar, a fazer, que a qualidade do resultado ou o olhar de outros sobre o resultado importam menos.
Entrevistas por
Jean Marc Lalanne e Marcus Rothe Les Inrockuptibles
Serge Kaganski Les Inrockuptibles
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