Obsessão
Depois de "Shortbus", de John Cameron Mitchell, os senhores responsáveis pela classificação de filmes deveriam reflectir duas ou mais vezes antes de, tacitamente, empunharem um carimbo vermelho com a designação M/18 ou R, remetendo assim uma obra para as salas marginais por conterem cenas de natureza sexual ou violência.
Esta película controversa, que mereceu uma ovação de pé dos distintos e sábios júri e público de Cannes, estabelece uma linha ténue entre o que se apelida de "cinema de autor" daquilo que vulgarmente se concebe como pornografia. Nos primeiros dez minutos de "Shortbus", autores e actores dão oportunidade a quem assiste de decidir se preferem atender ao evoluir dramático daquela história ou, por repulsão, abandonar a sala e benzer-se como as beatas que passam em frente aos cartazes do Cinebolso. Quem opta pela primeira hipótese, será brindado como uma das mais corajosas formas de contar histórias e quem escolher a segunda não merece mais do que umas orelhas de asno e um canto de uma sala de aulas do Estado Novo.
"Shortbus" acompanha o percurso de meia dúzia de personagens: a conselheira de casais que não consegue atingir o orgasmo; o casal gay que busca um terceiro elemento; uma dominatrix incapaz de estabelecer um contacto íntimo com outro ser humano sem a força da chibatada. Todas estas personagens estão unidas por um elemento comum - a obsessão - e vão cruzar-se precisamente por estilos vidas aparentemente díspares que, na realidade, se aproximam mais do que se separam.
Mitchell, que aborda uma Nova Iorque em depressão pós-11 de Setembro, traumática e vulnerável, escreve e realiza um argumento cujas pontas, só aparentemente, são seguradas pela sexualidade. O sexo, como todos sabemos, é uma parte intrínseca à humanidade. Mas é também na vida íntima que se reflectem os desejos, as ansiedades, os receios do quotidiano. Dissociar a sexualidade do ser humano, nas suas imensas variantes, é como amputar as barbatanas a um peixe ou retirar as mandíbulas poderosas a um crocodilo. Destemidamente, alheio a toda a censura, Cameron Mitchell retrata personagens de uma profundidade incomum cujos maiores anseios de felicidade residem em experiências sexuais satisfatórias. Mas que, com o entendimento das suas obsessões, vão tendo noção de que é preciso refazer nacos de si e das suas relações antes de passarem para as etapas seguintes.
Masturbação, penetração e ejaculação - magistralmente compostos por pessoas feitas actores - nunca são gratuitos. E, depois de "Shortbus", é inconcebível imaginar como é que o cinema não retrata o sexo com esta naturalidade. O filme, no início constrangedor, liberta-nos de complexos à medida que acompanhamos o drama, passado e presente, das suas personagens. O desconforto é rapidamente substituído pela gargalhada ou mesmo pela comoção. E este nem sequer é um retrato à "Sexo e a Cidade": não há Malono Blanicks, nem os restaurantes da moda, nem os Cosmopolitan. Há uma Nova Iorque em maqueta, underground, soturna, à beira do abismo, mas as figuras são tão vincadamente reais e extravagantes que rapidamente nos entregamos como se as conhecessemos, sem juízos nem moralidades. É a vida tal como ela é, mesmo quando achamos que a luz se está a apagar. 4 estrelitas
P.S. - Vou de férias para a Madeira, mas continuo atento aos vossos comentários e visitas. E, sempre que possível, vou actualizar o Movies: Confidential. Abraços e beijos a todos, de Bracken.
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