Pérolas do Ano I: "As Vidas dos Outros"
Aproveitando a reposição das grandes obras cinematográficas estreadas em Portugal entre Junho de 2006 e este mês, nas salas Medeia, tem início esta secção semanal, uma espécie de tributo ao que de melhor vi nos cinemas no último ano. A abrir, o obrigatório "As Vidas dos Outros".
Poucos filmes são capazes de recriar o ambiente nostálgico de um passado tão recente como este "Das Leben der Anderen". Nem de abordar um época turbulenta em termos políticos e sociais com tanto rigor e humildade. O filme de estreia do alemão Florian von Donnersmarck é um marco na cinematografia europeia, principalmente por conseguir aproveitar a História do seu País, sem devaneios nem fogo-de-artífico, trazendo ao grande ecrã um filme terrivelmente sincero. Assim como nós já deviamos ter feito sobre o Estado Novo e a opressão da polícia política e, acima de tudo, sobre as suas vítimas, numa altura em que Salazar virou mito para uma sociedade dotada de uma memória tão débil.
Um dramaturgo (Sebastian Koch) e uma actriz (Martina Gedeck) da Alemanha de Leste vivem um romance que teria tudo para dar certo, não fosse o primeiro pertencer a uma certa elite intelectual revolucionária, e a segunda alvo de desejo de um ministro da Cultura. Quando a luxúria dá lugar ao despeito e à vingança, o escritor passa a ser vigiado por um agente (excelente Ulrich Mühe, sósia de Kevin Spacey) de uma Stazi omnipresente e omnipotente, que faz da tortura instrumento de captura. Mas em cada rebanho, há uma ovelha tresmalhada. E, naquele caso, um homem capaz de desobedecer pela auto-consciência. E por amor.
Vencedor do Óscar de Melhor Filme Estrangeiro, "As Vidas dos Outros" começa com um perturbador interrogatório que rapidamente resvala para a tortura. Numa sala de aula, um professor explica aos seus alunos, com recurso à gravação daquele episódio, que a coacção é o único meio de obter a desejada confissão. Naquele momento, concluímos aquilo que manuais escolares ou filmes como "A Lista de Schindler" já nos ensinaram: a humanidade está equipada com os mais requintados mecanismos de crueldade. Mas o que poderia ser apenas mais uma obra em traços gerais sobre a ditadura é, acima de tudo, uma história sobre pessoas. E de como um romance - ou qualquer relação entre homens - pode ser tão vulnerável e estilhaçável se não existir liberdade, principalmente a de expressão.
"As Vidas dos Outros" é também uma lição: de como um organismo, uma instituição como a Stazi, polícia política comparável à nossa Pide, é feita de homens, não uma máquina imune à emoção. E de como um único homem pode mudar aquelas vidas, mesmo sujeito aos entraves hierárquicos. O filme de Donnersmarck desenvolve-se sem pressa, entranhando-se nos espectadores, fazendo-os viver ou reviver uma época onde cada lar poderia estar armadilhado com microfones, instalados com um único propósito: comprometer a nossa existência. E, acima de tudo, fazendo-nos abanar a cabeça de incredulidade. E, assim, concedermos o devido valor à dádiva de podermos conversar abertamente na nossa sala, sem termos de ligar a aparelhagem no máximo. 5 estrelitas