"Na maior produtora de cinema de animação do Mundo, a Disney/Pixar, trabalha um portuense. Afonso Salcedo iluminou o universo de “Ratatui”, a última fantasia do estúdio. E não quer ficar por aqui.
Quando se sentar numa sala de cinema para assistir a “Ratatui”, filme de animação que estreia em Portugal a 15 de Agosto, atente nos brilhos, nas sombras e na luz. Detenha-se no reflexo dos copos e dos tachos, no brilho da chama do fogão, na repugnância do lixo, nas vielas sombrias de Paris, onde decorre a história. É que toda esta atmosfera, milimetricamente delineada, tem dedo português. O portuense Afonso Salcedo é um dos elementos do fulcral departamento de iluminação da Disney/Pixar, o gigante responsável por alguns dos filmes de animação mais rentáveis de todos os tempos: “Os Incríveis” e “À Procura de Nemo”, para citar os mais recentes. “Ratatui” é o último produto a sair desta fábrica de fantasia, e um dos mais aclamados do seu extenso e bem sucedido “portfolio”. Só nos Estados Unidos, já rendeu 180 milhões de euros e a crítica tem sido unânime em considerá-lo como umas da melhores obras do estúdio.
No centro nevrálgico desta indústria milionária, Afonso Salcedo é o único português a contribuir para a criação desta fábula que junta homens a ratazanas, por computador, mas a mimetizar a vida ao pormenor. Aos 28 anos, a residir em São Francisco há três, o artista demora uma hora de metro a atravessar a cidade da Golden Gate, a ponte-gémea da 25 de Abril, para abraçar um trabalho de sonho na periferia da metrópole da costa Oeste dos Estados Unidos. “Não há um único dia em que não me sinta sortudo por trabalhar aqui”, diz ao “T&Q”. A ascensão foi vertiginosa. Em Londres, onde estudou, esteve responsável por tarefas “de escravo” na produção dos mega-êxitos “Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban” e de “Tróia” – “uma experiência incrível”, onde travou conhecimento com gente influente da indústria. Depois, rumou a São Francisco. Sempre com a ambição de um dia atravessar as portas da Pixar. “Nunca pensei que começasse tão cedo”, admite.
Os dois “blockbusters” que trazia no currículo aguçaram a curiosidade dos patrões da produtora e rapidamente começou a trabalhar. Primeiro, nos retoques do filme “Cars” – o “rendering”, na linguagem cinematográfica”–, depois a criar os ambientes através da luz, já em “Ratatui”.“O departamento de iluminação é um dos últimos a intervir num filme de animação. Depois de criados os desenhos, as imagens passam para nós. Criamos luzes, reflexos, sombras, de forma a criar o ambiente final. Temos um director de fotografia, e eu estive sempre à beira a mostrar o trabalho. Recebemos críticas ou orientações constantes: nesta cena, temos a personagem feliz, portanto tem de estar mais colorida”, explica assim a sua função.
Há poucos empregos onde a criatividade é constantemente estimulada, e Afonso tem consciência disso. “Recebemos muitos mimos, tratam-nos bem. Somos motivados a praticar desporto, temos campo de futebol, basquete e piscina. Existe ainda a Pixar University, onde se pode frequentar aulas de cinema, arte ou cerâmica, para evoluirmos como artistas. Temos uma série de regalias para termos motivação”, diz. “E também massagens”, acrescenta, entre risos.Sendo o único português no seio de uma equipa multicultural, acabou por transformar-se num embaixador do País que já só visita uma vez por ano, “para dar um olá aos pais”. “Perguntam-me muito sobre Portugal. Amigos da Pixar já foram aí por minha causa. Sou o único português a trabalhar cá, há bastantes brasileiros e de outras nacionalidades, mas acabou por criar-se um bom ambiente de trabalho. No Mundial, juntamo-nos e estamos todos a torcer pelos nossos países. E por Portugal, claro”, conta.
De cá saiu há dez anos, depois de concluído o ensino secundário na Escola Fontes Pereira de Melo, no Porto. Bastou-lhe assistir a um filme, “O Abismo” (1989), de James Cameron, conhecido pelo inovador efeito de um tentáculo de água, criado digitalmente, para ter a certeza de que era aquilo que pretendia fazer para sempre. Depois, estudou e aperfeiçoou-se em universidades de Londres e Southampton. A saída de casa em direcção ao desconhecido não apoquentou os pais, que continuam a residir no Porto. “Sempre me apoiaram, foram a força maior”. E até já têm a noite de 15 de Agosto planeada: a família vai em grupo assistir à estreia de “Ratatui”, em Portugal.
Afonso, que já visionou a obra uma dezena de vezes, também tem ido às salas para observar a repercussão do seu trabalho. “O que eu mais gosto é de ir ao cinema e ver a reacção das crianças ao filme onde trabalhei. Como o vi várias vezes, fico habituado e não penso na reacção do espectador”.E mal pode esperar para ver o original com dobragem portuguesa. “Deve ser engraçadíssimo, conheço tão bem o filme em inglês, queria ver como é que as piadas foram adaptadas”, diz.Enquanto palmilha um longo caminho para chegar a director de fotografia, vai expondo os seus instantâneos, outra paixão, em cafés de São Francisco. Procura nas fotos “inspiração” para “desenvolver ainda mais a observacao de como a luz cria ambiente e emoções numa imagem bidimensional”, como descreve numa página da Internet onde colocou os seus trabalhos.Regressar a Portugal já é um cenário descartado. “A trabalhar em produções destas, é difícil arranjar tempo. E já não me vejo a viver noutro sítio”.
in "Tal&Qual", edição 03 de Agosto