Tuesday, May 8, 2007

Obsessão


Depois de "Shortbus", de John Cameron Mitchell, os senhores responsáveis pela classificação de filmes deveriam reflectir duas ou mais vezes antes de, tacitamente, empunharem um carimbo vermelho com a designação M/18 ou R, remetendo assim uma obra para as salas marginais por conterem cenas de natureza sexual ou violência.

Esta película controversa, que mereceu uma ovação de pé dos distintos e sábios júri e público de Cannes, estabelece uma linha ténue entre o que se apelida de "cinema de autor" daquilo que vulgarmente se concebe como pornografia. Nos primeiros dez minutos de "Shortbus", autores e actores dão oportunidade a quem assiste de decidir se preferem atender ao evoluir dramático daquela história ou, por repulsão, abandonar a sala e benzer-se como as beatas que passam em frente aos cartazes do Cinebolso. Quem opta pela primeira hipótese, será brindado como uma das mais corajosas formas de contar histórias e quem escolher a segunda não merece mais do que umas orelhas de asno e um canto de uma sala de aulas do Estado Novo.

"Shortbus" acompanha o percurso de meia dúzia de personagens: a conselheira de casais que não consegue atingir o orgasmo; o casal gay que busca um terceiro elemento; uma dominatrix incapaz de estabelecer um contacto íntimo com outro ser humano sem a força da chibatada. Todas estas personagens estão unidas por um elemento comum - a obsessão - e vão cruzar-se precisamente por estilos vidas aparentemente díspares que, na realidade, se aproximam mais do que se separam.

Mitchell, que aborda uma Nova Iorque em depressão pós-11 de Setembro, traumática e vulnerável, escreve e realiza um argumento cujas pontas, só aparentemente, são seguradas pela sexualidade. O sexo, como todos sabemos, é uma parte intrínseca à humanidade. Mas é também na vida íntima que se reflectem os desejos, as ansiedades, os receios do quotidiano. Dissociar a sexualidade do ser humano, nas suas imensas variantes, é como amputar as barbatanas a um peixe ou retirar as mandíbulas poderosas a um crocodilo. Destemidamente, alheio a toda a censura, Cameron Mitchell retrata personagens de uma profundidade incomum cujos maiores anseios de felicidade residem em experiências sexuais satisfatórias. Mas que, com o entendimento das suas obsessões, vão tendo noção de que é preciso refazer nacos de si e das suas relações antes de passarem para as etapas seguintes.

Masturbação, penetração e ejaculação - magistralmente compostos por pessoas feitas actores - nunca são gratuitos. E, depois de "Shortbus", é inconcebível imaginar como é que o cinema não retrata o sexo com esta naturalidade. O filme, no início constrangedor, liberta-nos de complexos à medida que acompanhamos o drama, passado e presente, das suas personagens. O desconforto é rapidamente substituído pela gargalhada ou mesmo pela comoção. E este nem sequer é um retrato à "Sexo e a Cidade": não há Malono Blanicks, nem os restaurantes da moda, nem os Cosmopolitan. Há uma Nova Iorque em maqueta, underground, soturna, à beira do abismo, mas as figuras são tão vincadamente reais e extravagantes que rapidamente nos entregamos como se as conhecessemos, sem juízos nem moralidades. É a vida tal como ela é, mesmo quando achamos que a luz se está a apagar. 4 estrelitas
P.S. - Vou de férias para a Madeira, mas continuo atento aos vossos comentários e visitas. E, sempre que possível, vou actualizar o Movies: Confidential. Abraços e beijos a todos, de Bracken.

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